Predestinação nos Formulários Anglicanos



Em um período da história humana quando muito se faz da autonomia individual do ser humano, seu direito de escolha e sua possessão dos direitos humanos básicos, o ensino da predestinação para a vida eterna por Pai através do Filho e pelo Espírito Santo não atrai a muitos cristãos ocidentais. Parece exaltar Deus demasiado enquanto humilha ao homem excessivamente.

Por outro lado, há hoje uns poucos que se sentem muito fracos, sem esperança, alinhados e desamparados no contexto da vida moderna ocidental e diante de Deus, que para eles somente a mensagem da escolha e ação soberana pela Santíssima Trindade na misericórdia em nome deles parece responder a sua condição e estado de perda.

Olhando no passado, uma razão porque a predestinação divina parece tão óbvia e verdadeira para muitos Cristãos no século 16 era que eles acreditavam fortemente que tal era a natureza dos seus pecados e separação de Deus o Pai, e tão impotentes eram eles para realizar coisa alguma para ser aceitáveis a Deus, Senhor Santo, que sabiam com certeza que somente a graça soberana de Deus através de Cristo e pelo Espírito Santo poderia salvá-los. E acreditar nisto era acreditar que Deus, o eterno e onisciente Senhor, teria planejado tudo isto antes dele ter criado o mundo. Como lemos a Bíblia com sua narrativa da eleição de Abraão, Israel, e Jesus, e meditamos também sobre ensinos em lugares como Romanos 8-11 e Efésios 1 concernente ao propósito eterno de Deus em Cristo Jesus, eles seguiam Agostinho de Hipo e outros teólogos da Igreja em acreditar que a única razão válida e real pela qual eles tinham recebido a graça salvadora de Deus era que tinham sido escolhidos em Cristo antes da fundação do mundo. Sua escolha de Deus era de fato a escolha de Deus deles.

Esta doutrina da predestinação para a vida é apresentada com maior clareza no Artigo XVII dos “Trinta e Nove Artigos”, 1571, da Igreja da Inglaterra, e é assumido em vários lugares no Livro de Oração Comum (edições de 1549, 1552, 1559 e 1662). Veja o artigo ao final deste artigo.

Dentro dos Padrões Anglicanos de Fé (formulários), a doutrina da eleição divina é mantida dentro do contexto de culto e doutrina, especialmente como um meio para dar todo louvor pela salvação à Santíssima Trindade. É uma doutrina absolutamente necessária porque sem ela a Igreja perde a habilidade para confessar em gratidão e maravilhados a relação da obra de Deus no espaço e tempo para nossa redenção para Seu eterno ser e natureza como uma trindade de Pessoa e o único Deus que é onipotente, onisciente, justo e santo.

Contudo, a mente humana possui pela criação divina a capacidade de lógica e frequentemente busca ser lógica em certas áreas de pensamento, ação e experiência. Se a lógica é aplicada à evidência na Escritura na eleição divina, então é facilmente possível usar tal lógica para deduzir que se Deus escolheu milhões para ser os destinatários da sua graça salvadora, então Ele também (na sua sabedoria soberana inescrutável) também escolhe milhões para não ser os destinatários da sua graça salvadora. Aqui a ênfase lógica não é sobre o fracasso de milhões de receber o evangelho com fé obediente mas sobre a escolha soberana de Deus de não atuar neles causando o crer.

Este lado negativo da eleição divina foi resistido no Catolicismo Reformado (termo usado pelo autor para referir-se às características únicas da Reforma Inglesa) da Igreja da Inglaterra, ainda que os exilados que tinham estado em Genebra e voltaram durante o reinado de Elizabeth I pressionaram para que a dupla predestinação fosse incluída na confissão de fé da reformada Igreja da Inglaterra, como também fizeram alguns Puritanos na última parte do reinado de Elizabeth I e quando Rei James I chegou ao Trono em 1604. Estes exilados e Puritanos tinham sido influenciados pelas igrejas reformadas de Suíça, especialmente pelo ensino de João Calvino e Teodoro Beza, reformadores importantes que sentiram a obrigação através dos seus estudos bíblicos admitir a realidade da eleição divina não somente para aqueles que acreditavam no evangelho, mas também para aqueles que não acreditavam.

O que é chamado hoje como dupla predestinação entrou na mente das Igrejas (Presbiterianas) reformadas na metade do século 16 e se encontra nas suas Confissões de Fé, ainda que o lugar especifico onde está declarado nas Confissões não é uniforme. Talvez a declaração lógica da natureza dupla da predestinação divina mais clara, e a mais acessível, seja encontrada um século depois na Confissão de Fé e o Catecismo Maior (que foi escrita na Abadia de Westminster na metade de 1640 no período em que a Liturgia Anglicana e os Artigos da Religião eram proibidos na Igreja Inglesa; depois se converteriam nos Padrões da Igreja Nacional Presbiteriana de Escócia).

Não há dúvida que quando mantida com uma piedade bíblica e reverência diante de Deus, e com grande humildade (como me parece que foi feito pelo próprio Calvino), a doutrina plena da dupla predestinação tem feito e faz ainda cristãos fortes, no sentido de que eles acreditam que Deus é tudo e eles não são nada e que é somente pela graça de Deus que eles são. Esta doutrina tem dado e pode colocar ferro no sangue, como a história do “povo calvinista” demonstrou. O perigo com esta doutrina, como tenho demonstrado no meu primeiro livro, ‘O Surgimento do Hyper-calvinismo’ (The Emergence of Hyper-Calvinism ), é que sendo uma doutrina dentro de um sistema lógico pode facilmente se converter racional e ideológica e, portanto, tirar todo desejo de proclamar o Evangelho, evangelizar e fazer o bem a todos os homens, porque no fim Deus trará seus eleitos para si na sua própria soberania. (Veja também meu livro, Puritans and Calvinism).

Em contraste, a doutrina Anglicana como apresentada no Artigo XVII reconhece o que é abundantemente claro nas Escrituras e apresenta a mesma de forma cuidadosa e não especulativa, a fim de que a doutrina faça mais sentido, não no debate racional, mas como nos curvamos diante de Deus na adoração, agradecendo-lhe pela sua misericórdia e graça salvadora, e meditando sobre a obra expiatória de Cristo por nós. Enquanto a um bom clero Anglicano é requerido acreditar na eleição divina no sentido de eleição para a vida eterna; por outro lado, a ele não é requerido acreditar, ensinar e confessar o corolário lógico aparente, que Deus especificamente ordenou a muitos a ira e condenação. Uma última consideração, os supostos excessos do “Calvinismo” (pelo qual geralmente significa high e hyper Calvinismo), do qual muitos Anglicanos “anglo-católicos” reclamam, não é desculpa para rejeitar o lugar importante da Eleição Divina nos formulários Anglicanos e, deste modo, no Catolicismo Reformado.
ARTIGO XVII – DA PREDESTINAÇÃO E ELEIÇÃO 
A PREDESTINAÇÃO à vida é o eterno propósito de Deus, pelo qual (antes de lançados os fundamentos do mundo) Ele tem constantemente decretado por seu conselho, a nós oculto, livrar da maldição e condenação os que elegeu em Cristo de entre todos os homens, e conduzi-los por Cristo à salvação eterna, como vasos feitos para honra (Rom. 9:21ff). Portanto, os que se acham dotados de um tão excelente benefício de Deus, são chamados, segundo o propósito de Deus, por seu Espírito, que opera no tempo devido; pela graça obedecem ao chamamento; são justificados livremente; são feitos filhos de Deus por adoção (Rom 3:24; 8:15f); são formados à imagem do seu Unigénito Filho Jesus Cristo; vivem religiosamente em boas obras, e, pela misericórdia de Deus, chegam finalmente à felicidade eterna (Rom. 8:29f; Ef. 2:8-10). 
Assim como a piedosa consideração da predestinação e da nossa eleição em Cristo, é cheia de um conforto doce, suave e inefável para as pessoas piedosas e para as que sentem em si mesmas a operação do Espírito de Cristo, que vai mortificando as obras da carne e os seus membros terrenos, e arrebatando o pensamento às coisas altas e celestiais, não só porque muito estabelece e confirma a sua fé na salvação eterna que hão de gozar por meio de Cristo, como lhes torna mais fervorosa a natureza do seu amor para com Deus; assim também, para as pessoas curiosas e carnais, destituídas do Espírito de Cristo, o ter sempre presente a sentença da predestinação divina, é um precipício perigosíssimo, por onde o diabo as arrasta ao desespero, ou ao descuido, igualmente perigoso, duma vida impuríssima. 
Além disso devemos receber as promessas de Deus, como geralmente nos são propostas na Escritura Santa, e seguir nas nossas obras aquela vontade de Deus, que nos declara expressamente a Palavra de Deus.


Autor: Rev. Dr. Peter Toon, foi Presidente da Prayer Book Society (Sociedade do Livro de Oração) dos USA, até sua morte.

0 Comentários